A máquina de modificação genética ganhou espaço nos últimos anos, além de curar doenças até então incuráveis, em breve a humanidade poderá escolher os componentes da estrutura do DNA.O jornalista e escritor norte-americano Walter Isaacson, é conhecido por ter sido presidente e diretor executivo do Instituto Aspen e da CNN, e por seus excelentes trabalhos de biografia sobre Albert Einstein, Steve Jobs, Leonardo da Vinci e Benjamin Franklin. Dentre seus trabalhos, Isaacson publicou um livro incrível, A Decodificadora: Jennifer Doudna, Edição de Genes e o Futuro da Espécie Humana (2021).O autor narra a trajetória de Jennifer Doudna, cientista premiada com o Prêmio Nobel de Química de 2020, junto com Emmanuelle Charpentier por suas descobertas sobre edição de DNA, ou “pelo desenvolvimento de um método de edição de genoma”.Cabe aqui uma curiosidade interessante sobre essa conquista: as duas cientistas integram o seleto grupo de apenas sete mulheres que já receberam a honraria — em comparação, foram 178 vencedores homens.Elas mostraram pela primeira vez que o CRISPR – que significa Repetições Palindrômicas Curtas Agrupadas e Regularmente Interespaçadas (do inglês: Clustered Regularly Interspaced Short Palindromic Repeats) – poderia editar o DNA em um sistema in vitro em um paper publicado na edição de 28 de junho de 2012 da ScienceA descoberta rapidamente se expandiu através de vários cientistas e logo fez do CRISPR uma ferramenta de edição genética comum em laboratórios de todo o mundo também. O editor do genoma fez surgir indústrias trabalhando na fabricação de novos medicamentos, produtos agrícolas e formas de controlar pragas.O divulgador científico brasileiro Pedro Loos, do canal “Ciência Todo Dia” (YouTube), explicou que “o CRISPR é uma ferramenta de edição genética que deixou o processo muito mais simples e barato”.Citando o livro sobre o trabalho e vida da cientista premiada, descobrimos que estamos diante de uma tecnologia que pode mudar o rumo da humanidade. O autor relata que:“Hoje, o CRISPR vem sendo usado para tratar anemia falciforme, cânceres e cegueira, além de criar novos métodos para diagnosticar doenças. E em 2020, Doudna e suas equipes começaram a explorar como ele poderia detectar e destruir o coronavírus”.Ainda sobre o mal recorrente dessa pandemia, Jennifer Doudna, a Decodificadora, explica o seguinte:“O CRISPR evoluiu em culturas de bactérias que travam uma longa guerra contra os vírus. Nós, humanos, não temos tempo para esperar que nossas células evoluam a ponto de criar uma resistência natural a esses vírus, por isso temos de ser engenhosos” 

As Origens da Descoberta

Quando a atual cientista Jennifer Doudna ainda cursava a sexta série, encontrou em sua cama um exemplar de “A dupla hélice”, de James Watson, deixado por seu pai. Avançando pelas páginas e viajando pelo livro, Doudna conta que ficou fascinada com os bastidores da competição científica pela descoberta dos “tijolinhos que constroem a vida”, até chegar ao aprimoramento de um sistema de edição genética.Motivada pela paixão de entender o funcionamento da natureza e por transformar descobertas em invenções práticas, Doudna ajudaria a realizar aquilo que o próprio James Watson, um dos descobridores da estrutura do DNA, classificava como o próximo avanço científico mais importante da biologia. Observando o modo com que há bilhões de anos as bactérias combatem os vírus, ela e seus parceiros de pesquisa descobriram algo capaz de transformar a vida humana para sempre: Uma ferramenta de edição genética com um manuseio simples capaz de editar a estrutura do DNA. “Não faz todo o sentido que uma das ferramentas seja esse sistema imunológico antigo das bactérias chamado CRISPR? A natureza é linda assim”, explica a cientista Doudna.Muitos editores de genoma existiam antes do CRISPR, mas usá-los era demorado, complicado e caro. CRISPR não só funciona com notável facilidade e rapidez, como também é o primeiro editor que permite aos pesquisadores alterar vários genes em um único experimento.O CRISPR, como foi batizada, abriu um novo mundo de milagres da medicina, mas também levantou delicadas e profundas questões e dilemas éticos. 

O Dilema Ético da Edição Genética

O CRISPR também foi usado em um dos experimentos biomédicos mais polêmicos da última década, algo que gerou o surgimento de sérias discussões sobre dilemas éticos e até onde a ciência pode ser benéfica para a humanidade. Tudo ocorreu quando um cientista chinês (He Jiankui) usou essa ferramenta de edição genética para começar a editar os genomas de embriões humanos. Resultado? O nascimento de três bebês com genes alterados.He Jiankui tentou fazer com que o estudo fosse aceito pela Nature e a Revista de Associação Médica Americana, a JAMA. No entanto, o seu trabalho foi instantaneamente questionado pela comunidade científica e sequer chegou a ser publicado por estas ou outras revistas. O biólogo Davi Calazans, divulgador científico brasileiro e criador de conteúdo no “Ponto em Comum” (YouTube) mostra a importância de discutir a ética sobre técnicas de engenharia genética que podem realizar modificações genéticas no genoma de seres vivos (incluindo humanos). “Essa ferramenta de biotecnologia é muito mais fácil, rápida e barata do que tudo que já vimos até hoje na história da nossa espécie. Com o CRISPR poderemos criar bebês sem condições genéticas debilitantes e diminuir muito o sofrimento na humanidade. Porém isso vai trazer grandes dilemas éticos”, explica Calazans.Sobre os dilemas éticos da edição genética, o biólogo brasileiro levantou algumas questões:
  1. Quem terá acesso a essa tecnologia? Somente quem tem dinheiro? 
  2. Isso não iria causar uma segregação e preconceito econômico e biológico na sociedade? 
  3. Ao mesmo tempo, será que seria ético ou antiético nós não salvarmos crianças de doenças genômicas que podem ser prevenidas pelo CRISPR?
Sem deixar a importância desse assunto de lado, podemos destacar alguns avanços incríveis (e também éticos) dessa tecnologia de edição genética. 

Avanços e Conquistas Significativas

Em 2019, Cientistas da Universidade da Pensilvânia publicaram os resultados do primeiro teste estadunidense de células manipuladas pelo CRISPR em pacientes com câncer – a boa notícia é que os resultados são encorajadores.Em novembro, a equipe compartilhou os resultados de seu teste com o CRISPR, observando que as células editadas ainda eram detectáveis no corpo dos pacientes e não haviam produzido efeitos colaterais negativos.Já neste ano, pesquisadores da UC San Francisco e do Instituto Whitehead nos Estados Unidos descobriram como modificar o CRISPR para conseguir desligar genes, através do epigenoma, sem precisar alterar o código genético. A nova ferramenta foi batizada de “CRISPRoff“.As descobertas mostram que o CRISPRoof só precisa ser usado uma vez para ter efeitos duradouros. No tratamento de doenças genéticas raras e certas formas de câncer, que são causadas pela atividade de uma única cópia genética danificada, a tecnologia pode acabar eliminando elas por completo.E ainda mais recentemente, pesquisadores divulgaram dados provisórios dos primeiros seis pacientes em um estudo de Fase 1 em andamento conduzido pela Intellia Therapeutics e Regeneron Pharmaceuticals, marcando os primeiros resultados publicados de um ensaio clínico CRISPR envolvendo edição de genes humanos in vivo .O estudo está investigando um candidato a CRISPR denominado NTLA-2001 como tratamento para uma doença chamada amiloidose transtirretina (amiloidose ATTR). Esta rara doença hereditária ocorre devido a mutações no gene TTR, que faz com que o paciente produza proteínas transtirretina mal dobradas (TTR). Essas proteínas anormais se acumulam nos nervos e ao redor dos órgãos, causando dor e complicações, e podem ser fatais. 

Um Futuro Promissor

Se a última metade do século passado foi uma era digital, baseada no microchip, no computador e na internet, estamos agora no limiar de uma revolução da vida e da ciência: as crianças que estudam programação digital se juntarão às que estudam o código da vida. Parece ficção científica, mas é parte de um futuro promissor.O uso do CRISPR, assim como a corrida para o desenvolvimento de vacinas contra a Covid-19 estão acelerando a transição para essa nova era de inovações biológicas.Fyodor Urnov, pesquisador do CRISPR que trabalha com Doudna, chama a homenagem de “o mais merecido Prêmio Nobel dos últimos 20 anos”.A descoberta de Doudna e Charpentier “mudou tudo para melhor”, diz Urnov, que já trabalhou em um editor de genes mais complicado chamado dedo de zinco.“Podemos melhorar o mundo ao nosso redor de maneiras extraordinárias”, diz ele, lembrando que uma aplicação do CRISPR já curou uma pessoa com doença falciforme. “O século 21 será a Era da CRISPR – graças a Jennifer e Emmanuelle”.Tendo capitaneado as importantes descobertas que levaram ao CRISPR, Doudna assumiu papel de destaque na discussão das questões morais que envolvem a edição do genoma humano. Sua trajetória é uma emocionante história de detetive genética que envolve as mais complexas maravilhas da natureza, indo das origens da vida ao futuro promissor da nossa espécie.